Navios foram feitos para navegar, não para ficarem nos portos de partida. |
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Estamos em 2024 e dei-me conta de que lá se vão 30 anos desde que ingressei da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Naquela época não havia Internet, e-mail, redes sociais, telefones celulares. Era um mundo analógico com grandes salas repletas de pranchetas. Desenhar com o auxílio de um computador ainda era visto como um diferencial entre os arquitetos.
Assisti as primeiras aulas ainda como menor de idade. Completei 18 anos apenas algumas semanas depois. O professor Isaac notou minhas feições adolescentes. Eu era alto, magro e ainda tinha espinhas no rosto. Ele disse em alto e bom tom que, se dependesse dele, ninguém ingressaria na universidade tão jovem. Garotos entre 17 e 18 anos deveriam passar um ano viajando, para amadurecer um pouco.
Na ocasião, não concordei, pois me orgulhava de nunca ter sido reprovado na escola e de não ter feito cursinho para passar no vestibular. Somente anos depois compreendi o que ele queria dizer. De fato, aos 18 anos ainda era ingênuo demais para ser bombardeado com slides sobre as obras de Le Corbusier e Niemeyer, com aquelas professoras fumando um cigarro depois do outro, discursando sobre as correntes ideológicas e o modernismo.
Que alívio quando começaram a falar de Frank Lloyd Wright.
Ainda não tinha habilitação para dirigir. Nem veículo. Tomava três ônibus para ir até a faculdade e mais três para voltar. O transporte público sempre foi complicado. Mas quando meu pai me emprestou um Fusca 1972 azul, tudo melhorou. O carrinho era velho, mas gostava dele. As estradas eram vazias. Engarrafamentos? Só em São Paulo e no centro de Campinas.
Foram dias de luzes. É verdade que tive dificuldades para passar em Cálculo Diferencial e Resistência dos Materiais. Os anos de escola fundamental pública cobraram a conta. Porém, nas demais disciplinas, consegui bons desempenhos. Nada excepcional, salvo em algumas ocasiões. Havia muita coisa para estudar e trabalhos a serem entregues simultaneamente. Era preciso dividir as tarefas em nosso grupo e, por vezes, varávamos noites para concluir as demandas, tomando café e ouvindo Black Sabbath.
Aprendi a ouvir rock pesado com os novos colegas. Um deles me convenceu a ir no show do AC/DC no Pacaembu, em São Paulo. Aí já era. Para quem cresceu ouvindo Beatles, a faculdade abriu um leque de possibilidades também na boa música.
Não me formei apenas como arquiteto na PUC de Campinas. Formei parte do meu caráter, também.
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A conclusão do curso ocorreu em dezembro de 1998. Recebi nota 9 no TGI - Trabalho de Graduação Interdisciplinar. O professor Boris queria me dar 10, mas a Dona Amargura me daria nota 6 para baixar a média. No consenso, me deram 9. Nota 10? Só para a moça do partido e para o filho da outra professora, visitante na avaliação. Naqueles dias isso era importante para mim, até descobrir que os clientes não sabem o que é um TGI.
Há 25 anos recebi meu diploma. Fui até a inspetoria do CREA (Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia) em Campinas, retirar meus primeiros formulários de ART (Anotações de Responsabilidade Técnica). A atendente, sisuda, estava a caminho de se aposentar. Ela me ensinou a preencher aqueles documentos com folhas carbonadas. Liberavam dez unidades de cada vez. A gente não podia rasurar.
Antes de protocolar os projetos na Prefeitura de Paulínia, tínhamos que ir até a agência do INSS, também em Campinas, para fazer a matrícula de cada obra. Era um dia perdido. O jeito era acordar de madrugada e pegar a senha de atendimento. Por vezes, o sistema falhava e pediam para voltar no dia seguinte. O povo reclamava. Eu não. Tentava ser educado e compreensivo com as funcionárias públicas.
Uma delas teve dó de mim, que ainda parecia um moleque, embora já portasse um telefone celular junto ao cinto da calça. Certa vez ela cochichou: "faz o seguinte, vá caminhar pelo centro da cidade, pois quando a matrícula sair te dou um toque e você vem retirar". Esqueci o nome dela, mas não da gentileza.
Ainda não havia Internet Banking. Tinha que pagar pelas ARTs e outras despesas burocráticas na agência bancária, com filas intermináveis. Deixava acumular as coisas para pagar de uma só vez. Aproveitava para conversar com as pessoas. Nunca se sabe quando podemos prospectar um cliente. E as histórias chegavam para nós. Certa vez, um policial militar contou sobre como pegaram um bando que praticara um latrocínio, vitimando um menino de 5 anos. Nunca esqueci.
Na ocasião, Paulínia tinha apenas dois edifícios de apartamentos: um no centro da cidade e outro em Santa Terezinha. Loteamentos fechados? A novidade era o Okinawa. Depois lançaram o Campos do Conde. No começo, era tranquilo para acompanhar as obras nestes lugares. Mas a paranoia com a segurança só aumentou. Um dia, numa portaria, o guarda particular pediu para abrir o porta-malas do carro. Respondi:
- Sou arquiteto. Você acha que vim aqui para roubar um martelo?
Sim, a nossa profissão já foi mais respeitada.
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Desde o primeiro mês de carreira, economizei parte dos rendimentos para o futuro. Fiz bons projetos e alguns bons negócios. Com isso, consegui terminar a construção da nossa casa em 2009. Já podíamos casar. O dinheiro para a lua de mel, porém, ficou curto. Nada de Paris. Nada de Caribe. Fomos para um hotel em Águas de Lindóia, não muito longe. As mini férias, as primeiras em dez anos, duraram apenas quatro dias úteis. Na primeira quinta-feira depois da festa, já estava de volta ao batente, num lar novo, num escritório novo, numa vida nova.
Lembro de acordar e estranhar o teto, olhar para o lado e notar que a porta da suíte estava na direção oposta. Lembro da primeira vez que fui fazer compras com minha esposa. Da primeira vez que fui visitar meus pais e senti o cheiro de um tempo que ficou para trás. Felizmente, estava sem tempo para sentir as mudanças. O ritmo de trabalho me deixava entusiasmado, começando uma nova poupança para voltar a empreender no mercado de imóveis.
Poucos anos depois compramos um terreno num loteamento fechado. Ficamos apertados de novo, sem dinheiro para pagar as taxas do cartório que faria o registro da escritura na matrícula do lote - o que só conseguimos no mês seguinte. Os trocos na carteira não davam sequer para uma pizza, mas saímos para comer cachorro quente. O senhor sentado na mesa do lado me chamou pelo nome. Pediu para ir até o escritório dele no dia seguinte, pois me daria um projeto para fazer. Ouvir aquilo foi um alívio.
Assim, as coisas foram se ajeitando, os terrenos valorizando, os projetos acontecendo. A Internet foi tomando conta das nossas rotinas e o Google me trazia bons clientes. Meu escritório figurou por anos nos primeiros resultados para pesquisas de profissionais em Paulínia. No entanto, o Google também começou a complicar minha relação com alguns contratantes, que chegavam no escritório com uma pasta de imagens de outros projetos e até algumas plantas coletadas "de graça" na rede.
Reeducar um cliente que se pensa expert em construções, dado que passou alguns fins de semana pesquisando no Google, passou a fazer parte do escopo de trabalho dos arquitetos profissionais. Se antes eles transpareciam autoridade perante os leigos, alguns passaram a ser vistos como meros despachantes de projetos.
Porém, se tem algo que a experiência me trouxe, é que não são apenas os clientes que escolhem os arquitetos: estes também podem - e devem - escolher para quem vão trabalhar. Para tanto, é fundamental não depender de apenas uma fonte de renda. O bom arquiteto precisa empreender, sempre que possível. Além disso, deve investir suas economias a ponto de obter renda passiva, seja com imóveis ou com ativos do mercado financeiro.
Sobre isso, poderemos conversar em outra ocasião. Basta salientar que o tempo não corre: voa. Lá se vão 30 anos desde o começo da faculdade, 25 desde o começo da carreira e 15 desde o casamento.
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